Rótulos ou Guias? Decifrando o Mundo das Classificações Diagnósticas em Psiquiatria Infantil

No campo da saúde mental, especialmente quando falamos de crianças e adolescentes, o diagnóstico é uma ferramenta complexa. Ele não é um destino, mas um ponto de partida, um guia para entender e oferecer o melhor caminho de cuidado. Para navegar por essa complexidade, os profissionais utilizam sistemas de classificação diagnóstica. Mas o que são esses sistemas? Como eles evoluem e qual o impacto real dessas classificações na vida de nossos filhos e alunos? Este artigo mergulha no universo dos manuais de diagnóstico mais utilizados globalmente – o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Internacional de Doenças) – para desvendar suas estruturas, as mudanças recentes e a importância de compreendê-los com discernimento.

A Necessidade de Classificar: Comunicação e Pesquisa

Desde os primórdios da medicina, a necessidade de classificar as doenças surgiu para organizar o conhecimento, facilitar a comunicação entre os profissionais de saúde e guiar a pesquisa. Na psiquiatria, e particularmente na psiquiatria infantil, essa necessidade é ainda mais premente, dada a subjetividade dos sintomas e a ausência de marcadores biológicos definitivos, como discutimos no artigo anterior.

Os sistemas de classificação, como o DSM e a CID, servem a vários propósitos cruciais:

  • Comunicação: Permitem que profissionais de diferentes países e formações utilizem uma linguagem comum para descrever os transtornos, facilitando a troca de informações clínicas.
  • Pesquisa: Fornecem critérios padronizados para a seleção de grupos de estudo, impulsionando a pesquisa científica sobre causas, tratamentos e prognósticos dos transtornos mentais.
  • Ensino: São ferramentas pedagógicas essenciais para a formação de novos profissionais da saúde mental.
  • Políticas de Saúde: Auxiliam na coleta de dados epidemiológicos, no planejamento de serviços de saúde e na alocação de recursos.
  • Prática Clínica: Embora não substituam a avaliação clínica completa e a contextualização individual, oferecem um arcabouço para organizar as observações e formular hipóteses diagnósticas.

É importante ressaltar que essas classificações são consensos científicos de sua época. Elas refletem o conhecimento disponível, as perspectivas teóricas predominantes e até mesmo as preocupações sociais e culturais de um determinado período. Por isso, estão em constante revisão e modificação.

Da Multiaxialidade à Visão Integrada: As Mudanças no DSM-5 e CID-11

Historicamente, classificações como o DSM-IV e a CID-10 utilizavam um sistema multiaxial, que permitia ao profissional registrar diversas informações além do diagnóstico principal. Por exemplo, era possível indicar transtornos de personalidade, condições médicas gerais, problemas psicossociais e o nível de funcionamento global do indivíduo. Essa abordagem buscava uma visão mais abrangente da pessoa.

No entanto, as versões mais recentes – o DSM-5 (lançado em 2013 pela Associação Psiquiátrica Americana) e a CID-11 (lançada online em 2018 pela Organização Mundial da Saúde, em vigor desde 2022) – trouxeram mudanças significativas. Uma das mais notáveis foi a supressão do sistema multiaxial no DSM-5, unificando os eixos I, II e III e incorporando as informações sobre problemas psicossociais e prejuízos funcionais em outras seções do manual. A CID-11, embora mantenha alguns princípios da CID-10, também reflete uma abordagem mais simplificada e integrada.

A Ascensão dos Transtornos do Neurodesenvolvimento

Uma das maiores tendências observadas nas novas classificações, especialmente no DSM-5 e na CID-11, é a crescente ênfase nos “Transtornos do Neurodesenvolvimento”. Antigos grupos diagnósticos específicos da infância e adolescência, como os “Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância e adolescência” (no DSM-IV) ou os “Transtornos do desenvolvimento psicológico” (na CID-10), foram reestruturados.

Muitos diagnósticos antes dispersos agora estão sob o guarda-chuva dos Transtornos do Neurodesenvolvimento, que incluem:

  • Deficiências Intelectuais (antigo Retardo Mental)
  • Transtornos da Comunicação/Linguagem
  • Transtornos da Aprendizagem Específicos
  • Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)
  • Transtornos do Espectro do Autismo (TEA)
  • Transtornos de Movimentos (como Tiques)

Essa reclassificação reflete o impacto das neurociências e das pesquisas sobre o desenvolvimento cerebral. A ideia é agrupar condições que se manifestam precocemente no desenvolvimento e que estão associadas a déficits em áreas específicas do funcionamento cerebral.

Novos Diagnósticos e Dispersão de Quadros Infantis

Além da reestruturação dos grupos, as novas classificações também introduziram diagnósticos inéditos e dispersaram outros quadros que antes eram considerados tipicamente infantis.

  • Novidades: O DSM-5 incluiu o Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor (TDDH), e a CID-11 trouxe o Gaming Disorder (transtorno de jogos eletrônicos), enquanto o Transtorno de Escoriação (skin picking) aparece em ambos. Essas novas categorias visam abranger manifestações de sofrimento que se tornaram mais evidentes ou que ganharam reconhecimento ao longo do tempo.
  • Dispersão: Alguns diagnósticos que antes eram exclusivamente infantis foram realocados para grupos mais amplos. Por exemplo, o Transtorno de Ansiedade de Separação e o Mutismo Seletivo agora estão no grupo dos Transtornos de Ansiedade. Os Transtornos de Conduta e o Transtorno Desafiador de Oposição foram para o grupo dos Transtornos Disruptivos. Essa mudança pode ser vista como uma tentativa de integrar a psiquiatria infantil e adulta, mas também levanta a preocupação com a perda da especificidade das nuances do desenvolvimento na infância.

Implicações na Prática Clínica e na Compreensão do Paciente

A evolução das classificações diagnósticas tem implicações diretas na forma como os profissionais abordam o diagnóstico e o tratamento.

  • Prós: A padronização pode facilitar o acesso a tratamentos baseados em evidências e a comunicação entre equipes multidisciplinares. A ênfase no neurodesenvolvimento pode estimular pesquisas sobre as bases biológicas dos transtornos.
  • Contras: A dispersão de diagnósticos infantis em categorias mais amplas pode fazer com que as particularidades do desenvolvimento da criança sejam menos valorizadas. Além disso, a inclusão de novas categorias, por vezes com um nível de evidência ainda incipiente, pode gerar o risco de patologizar comportamentos que são variações da normalidade ou respostas adaptativas a ambientes difíceis. Há também o risco de “reificar” os transtornos – ou seja, tratá-los como entidades separadas da criança, esquecendo que eles são modos de manifestação de sofrimento ou dificuldades, e não “coisas” que a criança “tem”.

É fundamental que, ao utilizar essas classificações, os profissionais mantenham um olhar crítico e contextualizado. O diagnóstico não deve ser um rótulo que define a criança, mas uma ferramenta para guiar a compreensão de seu sofrimento e a elaboração de um plano de cuidado individualizado, que sempre levará em conta a história da criança, sua família e seu ambiente. As classificações são valiosas guias, mas o verdadeiro trabalho de cuidado reside na capacidade de ver a pessoa para além do diagnóstico.

Conclusão: Classificar para Cuidar, Não para Rotular

As classificações diagnósticas são, portanto, documentos vivos, que evoluem com o conhecimento científico e as necessidades sociais. O DSM-5 e a CID-11 representam o estado da arte atual, mas não são a palavra final. Eles oferecem um vocabulário comum e uma estrutura para a prática clínica e a pesquisa, mas nunca devem substituir a avaliação clínica abrangente, a escuta atenta e a contextualização da história de cada criança e adolescente. Classificar é um ato necessário para a ciência e a prática, mas o objetivo primordial é sempre cuidar e promover o bem-estar, evitando que um “rótulo” ofusque a complexidade e a individualidade de cada ser em desenvolvimento.

Perguntas para o Leitor

  1. Como a compreensão de que as classificações diagnósticas evoluem com o tempo muda sua percepção sobre os diagnósticos de saúde mental?
  2. Pensando na “ascensão” dos transtornos do neurodesenvolvimento, qual a importância de um olhar que valorize tanto os aspectos biológicos quanto os sociais e emocionais no cuidado da criança?
  3. Na sua experiência como pai, mãe, educador ou interessado, qual a diferença entre um diagnóstico ser um “rótulo” e ser um “guia” para o cuidado?

Fonte Principal

  • Almeida, Roberto Santoro; Lima, Rossano Cabral; Crenzel, Gabriela; Abranches, Cecy Dunshee de. Saúde mental da criança e do adolescente (Portuguese Edition).

Advertência

Este artigo tem caráter informativo e não substitui a consulta com um profissional de saúde qualificado. Se você tem preocupações sobre a saúde mental de uma criança ou adolescente, procure um psiquiatra infantil, psicólogo ou outro especialista da área.